sexta-feira, 10 de abril de 2009

A Pólis do Paraíso

Andei como uma condenada naquele dia. Só de lembrar minhas panturrilhas se estremecem de fadiga: foram uns exagerados 10 km a pé, depois de descer do Jardim das Palmas-Hospital das Clínicas na altura do número 2.600 da Av. Giovanni Gronchi. Olhava tudo com muita discrição, e ao mesmo tempo com uma ansiedade e um receio pulando por dentro. Nunca havia entrado em uma favela, e lá estava Paraisópolis a me esperar.
Com um gravador na mão, a utopia na cabeça, e mais três amigos, fui andando e registrando com meus olhos: casarões com muros altos, ruas desertas, carros importados, muito dinheiro, portões de alta segurança, e uma bifurcação. Conforme subíamos a rua, a realidade dentro de outra realidade se mostrava. O mundo das ruas e não das casas, da malandragem e não da maquiagem, da pobreza e não da riqueza, da luta e não da perda, da vida e não da morte, de milhares e não de poucos, do povo e de gente como a gente.
À frente um bar, uma mesa, um senhor, uns olhos vermelhos, uma garrafa, uma criança, e quatro estudantes andarilhos de jornalismo. Ao lado uma casa, uma porta de vidro, várias roupas, uma máquina de costura e uma senhora: “Com licença! Por favor, a senhora sabe onde fica a Associação de Moradores?”, “Sim. No final dessa rua”. Mal sabíamos que o final da rua estava bem longe do bêbado e da costureira.
A rua parecia nunca chegar ao fim, e o sol e o calor também não. A garrafinha de água já estava vazia, as pernas já estavam cansadas, os corpos suados, a paciência persistia, e o tempo já tinha se esgotado. Mas continuávamos. Uma ‘Casas Bahia’ gigante, um supermercado, um ônibus laranja estacionado, uma rua estreita, e um moço: “Por favor, a Associação de Moradores é por aqui mesmo?”, “Olha, moça, não sei, mas continua reto que você chega lá!”.
Mais adiante, um lugar encantador, e um devaneio sonhador apareceram. Havia um carro antigo parado em sua frente, parecia um opala e era bege, um branco sujo para melhor dizer. A Marcenaria que-não-me-lembro-o-nome, construía-se envolta de uma árvore grande e gorda. Cheia de penduricalhos, além de marcenaria era um antiquário. Colorido, estreito e curioso, havia também um senhor, uma cadeira, e uma cigarrilha sentados à porta. Bateu uma vontade enorme de entrar, conhecer e conversar, mas me contive. Ficou pra próxima, a visita ao senhor que dei o nome de Manuel.
Continuávamos. Encontramos numa esquina com um familiar: “olha, não parece o cachorro do Ensaio Sobre a Cegueira?”. Sim, parecia. Parecia não, era igualzinho. Bege, descabelado e perdido. Só não havia ninguém chorando na porta da vendinha em que se encontrava para poder mostrar realmente a que veio. ‘Descabelado, o cachorro enxugador de lágrimas!’.
Depois de guardar o gravador, esquecer da utopia, continuar com três amigos, não ter mais uma garrafinha cheia de água, estar com o desodorante vencido, com as bochechas coradas do sol, passar por um bêbado, uma criança e uma costureira, por subidas e descidas, por ruas estreitas, por um ônibus laranja solitário, por uma ‘Casas Bahia’, pela marcenaria do seu Manoel e pelo ‘Descabelado’ chegamos onde tínhamos que chegar.
Só aí, já dava pra escrever uma história e tanto. Sentamos, e ficamos por um bom tempo na companhia de João Antônio, Zélia Gatai, Graciliano Ramos, Tina Modotti, Gabriel García Marquez, e de livros com títulos do tipo, “O Sol é Para Todos” e “A Sangue Frio”. Sentar e ficar entre livros naquele momento, foi a glória, acredite.

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