sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

O acerto

A manhã passou e continuou deitado na cama, largado, internamente clamando por algo que pudesse salvá-lo. Nem sequer conseguiu dormir um pouco mais. Seus olhos não fechavam. Virou-se de lado e foi cegado pela luz do rádio-relógio que marcava catorze horas e trinta e dois minutos. Achou um disparate ter deixado seu corpo entregue a tamanho deleite sobre um pecado tão capital como a preguiça. Sentiu uma imensa culpa por achar que ao deitar-se todos os questionamentos iriam pra longe.

Cumpriu com o mesmo ritual de antes. Abriu as cortinas, deixou o sol entrar, arrumou a cama, foi ao banheiro lavar a face e olhar novamente os respingos, foi até a cozinha, deu um gole no café amanhecido e lembrou-se do que sua falecida avó dizia, 'café velho e frio, é como um chute na bunda, meu filho', e sentiu o café descer com desgosto pela garganta. Preparou um pão com manteiga para saciar sua fome por hora, e desanimou quando viu as panelas engorduradas sem lavar na pia. 'Há quantos dias ninguém aparece por aqui?', murmurou.

Sentiu vontade de ouvir Ella. Sempre se sente acolhido quando ouve o som da sua voz. Grande, negra e bela, Ella Fitzgerald. Ligou o toca discos, e enquanto ouvia a melodia, 'how high the moon, there is no moon above when love is far away too, till it comes true, that you love me as I love you...', sentiu saudades de um tempo que não volta mais, moreu seu pão com manteiga e deu mais um gole no desgostoso café.

O sol mostrava seu brilho como nunca através das janelas. Em frente à escrivaninha, e os papéis respingados de café ainda estavam lá. Sujos de café e limpos de palavras. Apenas papéis e respingos. Nada de letras, palavras, sintaxes, paráfrases. Nada. Nenhuma de suas anotações estava lá.

O não e o sim continuavam a vagar por sua cabeça, quando subitamente, jogou a xícara cheia de café contra a parede, como que para descontar sua raiva. O barulho da xícara quebrando deu-lhe um imenso prazer. Amassou todos os papéis em cima da mesa.

Olhou todos aqueles cacos no chão, e com as mãos apertando a cabeça como se dela fosse sair algo, passou as mãos pelo rosto e correu para o espelho. Ficou por minutos ali, encarando a si mesmo em silêncio. Abriu a torneira e molhou as mãos. Molhou o rosto também. Secou-se. Não havia nenhum respingo.

Depois de acalmar-se e organizar os monstros, voltou à escrivaninha, sentou-se, pegou um lápis, um papel e começou a escrever desesperadamente sobre o que sentia. O reflexo do sol batia nos cacos de vidro e Ella sussurrava baixinho, 'I walk the floor and watch the door, and in between I drink, black coffee...'.
Os cacos continuaram lá, e em seus pensamentos dizia, "nunca acertei tanto em acabar brutalmente com um desgosto".

Nenhum comentário:

Postar um comentário